sexta-feira, 25 de janeiro de 2008

PARA UMA DIDÁCTICA DA INTERCULTURALIDADE

No texto de abertura deste blogue, Roberto Carneiro enunciou uma série de pistas - “perguntas difíceis” – sobre a afirmação da interculturalidade como uma realidade própria do mundo contemporâneo. Entre elas lembrava a necessidade de uma “didáctica da interculturalidade capaz de viabilizar uma aldeia global”. Creio que, de facto, esta é uma das vias possíveis e mesmo necessárias no sentido do respeito mútuo; cabe em grande medida à História mostrar que não há sociedades ou civilizações “puras” e que as tensões que hoje se fazem sentir são o choque, afinal, entre civilizações que representam, elas próprias, diferentes processos de interculturalidade.

O século XX assistiu a uma aceleração considerável dos fluxos migratórios geradores de comunidades migrantes minoritárias, mas numerosas, em países de acolhimento. Muitos desses grupos acabaram por se integrar plenamente na sociedade que os acolheu, mesmo que mantivessem a memória da sua origem, sobretudo quando a circulação se fez dentro da Europa, ou entre a Europa e a América. No entanto, a generalização destes grandes movimentos criou novos problemas, quando minorias oriundas de civilizações distintas se adaptaram às tecnologias de quem os acolheu, mas cultivaram simultaneamente uma endogamia (cultural e genética) e mesmo um desprezo pela cultura receptora.

Este é, sem dúvida, um dos grandes problemas do mundo contemporâneo, pois estes fenómenos de resistência (que são, em regra, recíprocos e propiciadores de guetos) resultam, como disse, da convicção de que existem culturas e civilizações “puras”, que devem ser preservadas por constituirem um legado imutável que deve passar impoluto de geração em geração. Por todo o mundo há indivíduos e grupos arreigados a tais ideias. Os últimos 10.000 anos da aventura humana à face da Terra mostram o contrário.

É evidente que há comportamentos e práticas que distinguem consideravelmente as sociedades actuais, e que as razões dessas diferenças se explicam pela variedade dos respectivos antecedentes, mas nenhuma se pode reclamar herdeira de um legado imutável. Na verdade, todas as culturas contemporâneas são o resultado de assimilações, de imposições violentas, de trocas pacíficas, do cruzamento de povos entretanto desaparecidos, da sedimentação de velhas tradições que perdem visibilidade mas que perduram de formas subtis, da adopção de técnicas inventadas por outros.

Tomemos por exemplo o caso da nossa própria civilização, e vejamos as principais características da cultura portuguesa nos séculos XV e XVI, quando os Portugueses primeiro e os Europeus de seguida se apresentaram ao mundo como portadores de uma civilização superior. “A sua estrutura política assentava num modelo de relacionamento de matriz feudo-vassálica, que havia sido trazido pelos povos germânicos, aquando da queda do Império Romano, mas o Direito e a Religião eram herdeiros sobretudo das tradições de Roma. A Filosofia e a Ciência, por sua vez, tinham as suas origens no legado grego (…). A religião predominante, tivera as suas origens na Ásia, da confluência da tradição judaica com o pensamento original de Jesus Cristo (em que encontramos referências éticas comuns ao pensamento budista e taoista, por exemplo), e que depois se havia moldado ao pensamento helénico e, no Ocidente, à tradição latina e ao pensamento pagão pré-existente. A religião, só por si, era, pois, o resultado de um longo e complexo encontro de culturas, que decorrera basicamente, ao longo do primeiro milénio da Era Cristã.

Os Portugueses levaram consigo esta síntese cultural, a que se acrescentava o seu hábito de fixar fortalezas e futuras cidades em lugares acidentados, na lógica da velha tradição castreja das populações pré-romanas. Faziam-se acompanhar de um folclore onde estavam incorporados elementos dos antiquíssimos invasores celtas e dos mais recentes conquistadores muçulmanos. Falavam uma língua que tinha por base o latim dos romanos, mas cujo léxico guardava a memória não só dos que haviam sido derrotados pelas legiões de Roma, mas também dos que tinham depois imposto o estandarte do Profeta durante séculos no território peninsular, até serem expulsos daí pelo movimento da Reconquista. Ao montarem a máquina administrativa que sustentou um império disperso por quatro continentes, os Portugueses desenvolveram uma complexa burocracia, assente em milhões de documentos escritos em papel – uma invenção chinesa, captada pelos muçulmanos e trazida para a Europa, e a partir do século XVI começaram a utilizar sistematicamente a numeração árabe que, afinal, fora uma descoberta dos indianos que os conquistadores árabes haviam assimilado. E é bom não esquecer que o sucesso da navegação oceânica teve um forte contributo da utilização da bússola, outra invenção vinda da China, tal qual a pólvora, igualmente decisiva, na medida em que o império foi forjado na diplomacia, no comércio, mas muitas vezes também a tiros de canhão”[1].

No dia em que todos formos capazes de olhar para as nossas culturas como o resultado de sucessivos cruzamentos, e os aceitarmos sem mágoas nem ressentimentos, talvez o argumento da especificidade ou da superioridade civilizacional passe a ser rejeitado por um número crescente de indivíduos. Nessa ocasião, as relações entre os povos serão mais fáceis.

A pedagogia da interculturalidade – a compreensão de que somos todos interculturais e de que estamos sempre a gerar novas formas de interculturalidade – é certamente um passo necessário para a Paz e para o respeito entre os homens.

João Paulo Oliveira e Costa
Vogal da Direcção do CEPCEP
Professor do Departamento de História da Univeridade Nova de Lisboa
Director do Centro de História de Além-Mar

[1] Costa, João Paulo Oliveira e Lacerda, Teresa (2007), A Interculturalidade na Expansão Portuguesa, Lisboa, ACIME, pp. 18-19.

A História na história do CEPCEP

Ao longo dos séculos e sobretudo a partir da época quinhentista, o encontro de culturas foi uma das constantes da história de Portugal. Daí a atenção que o CEPCEP desde a sua criação deu aos estudos de história, quer nas suas vertentes social, cultural e religiosa, quer nos aspectos políticos e económicos. Também multiculturalidade e a interculturalidade, conceitos desenvolvidos sobretudo no último quartel do século passado, são objecto de aturados estudos neste ano internacional em que assinala o “Diálogo Intercultural”. Mas o estudo biográfico mereceu ainda um grande incremento com a publicação, por iniciativa do CEPCEP, da colecção completa das biografias de todos os reis portugueses. Pensamos que um melhor conhecimento da nossa história, passa necessariamente por uma maior informação da vida dos governantes nos cerca de oito séculos da história.
Aspectos da presença portuguesa no Oriente foram desde logo assinalados com a realização de dois ciclos de conferências realizadas em 1985-86. E em período comemorativo e mais avançado, a chegada dos portugueses ao Japão e o século cristão que se lhe seguiu seriam solenemente assinalados, mas também cientificamente estudados e discutidos no colóquio internacional que teve lugar em Lisboa em 1993.
A tarefa da organização do VIII Seminário Internacional de História Indo-Portuguesa, dedicado à carreira da Índia e à rota dos Estreitos, seria sobretudo cometida ao CEPCEP, que o realizou na cidade de Angra – escala de regresso necessária e quase obrigatória dessa e de outras viagens ao Oriente, África e Américas.
O findar do milénio seria também motivo de avaliação dos aspectos marcantes da história de Portugal, com uma análise profunda e rigorosa dos acontecimentos que distinguiram cada um dos séculos, elaborados pelos mais respeitados historiadores desses períodos.
Em tempos de globalização e ao cumprirem-se 500 anos sobre o nascimento de D. João III – o rei que mais estruturas criou no Império Português e estabeleceu comunicação entre as partes que o compunham – promoveu a realização de um congresso internacional sobre D. João II e o Império, com contribuições inovadoras que alteram e enriquecem, o conhecimento histórico deste monarca no seu comportamento em relação ao reino, como, sobretudo, no além-mar.
A história recente de Timor e a intervenção portuguesa no processo que conduziu à independência seriam estudados e avaliados num projecto de investigação cujos resultados seriam expressos em livro (O Papel de Portugal na Transição de Timor, Lisboa, 20004).
A história de S. Tomé e Príncipe e alguns projectos realizados neste Centro conduziria à elaboração de um manual escolar, cuja utilidade levou à sua divulgação nesse país sob forma inacabada (1992).
A religião e a educação em África foram temas debatidos em ciclos de conferências, em que participaram africanos e portugueses, tendo algumas das contribuições sido editadas em Povos e Culturas, revista do CEPCEP de periodicidade anual. A propósito anote-se também as muitas contribuições de natureza histórica que esta revista foi reunindo ao longo do tempo na secção “Inéditos do CEPCEP” e que, sob a forma de estudos ou documentos, constituem valiosos contributos para a história dos territórios de presença portuguesa.
Embora reunindo as várias áreas do saber, mas valorizando muito a vertente histórica o centro tem vindo a produzir uma Enciclopédia Açoriana cujo termo se avizinha para o próximo mês de Março e cuja maioria das letras já se encontra disponível on line. Da geografia à história, da biografia à linguística, da literatura à biologia, é todo um vasto e rico manancial informativo que enriquece o conhecimento dos Açores e das suas gentes.
E, neste ano internacional consagrado ao Diálogo Intercultural o CEPCEP empenha-se em produzir uma obra em vários volumes sobre Portugal Intercultural: Razão e Projecto, onde será abordada a multiculturalidade, nas suas raízes, estruturas, contextos, dinâmicas, matrizes e configurações, bem como as transformações da identidade, resultantes da interculturalidade.

Lisboa, 18 de Janeiro de 2008

Artur Teodoro de Matos

quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

INTERCULTURALIDADE: UM DEBATE INADIÁVEL

2008 é o Ano Europeu do Diálogo Intercultural.
Nunca, como actualmente, se impôs com tamanha premência uma reflexão aprofundada sobre o diálogo entre culturas, a relação entre vizinhos, a gestão da diversidade.
São várias as razões que conduziram à emergência desta nova agenda. Avultam, entre outras, o “achatamento” do mundo[1], a intensificação dos movimentos migratórios[2], a violência interétnica e a intolerância entre povos[3], as pulsões contraditórias de hibridação cultural e de identidades predatórias[4].
Dito de outro modo, as categorias analíticas de compreensão do mundo da velha ordem industrial são inadequadas – e manifestamente insuficientes – para descodificar o mundo da nova ordem pós-moderna, individualista, complexa e intercultural.
Nas palavras argutas de A. Touraine[5] assiste-se ao fim da sociedade e ao nascimento do “sujeito” – antes o indivíduo era produzido pela sociedade, nos seus comportamentos e no seu pensamento; agora, o contrário é que é verdade. O sujeito é o protagonista do novo paradigma, entendido como alguém que procura criar-se a si próprio, que se forma na vontade de escapar às forças, às regras, aos poderes que nos impedem de ser nós mesmos e na vontade de ser actor da sua própria existência. Vivenciamos o ascenso do individualismo radical e, em concomitância, a era da afirmação da especificidade cultural.
O “paradigma social”» (séculos XIX e XX) está em vias de ser substítuído por um novo “paradigma cultural” (século XXI). Os direitos culturais constituem o pivot do novo paradigma. Estes não se confudem com os direitos políticos, posto que se estes últimos devem ser atribuídos a todos os cidadãos, aqueles protegem, por definição, populações particulares. Emergem novas categorias interpretativas cerzidas em torno de três ideias-chave: (i) a decomposição da ideia de sociedade ou declínio do social, (ii) o avanço não controlável de forças supra-sociais (v.g. guerra e mercado), (iii) o aumento das reivindicações culturais.
Pairam no ar perguntas difíceis mas, nem por isso, menos pertinentes:
· Como levar as culturas a dialogar entre si?
· Podem os códigos universais (ex. direitos humanos, modelo de governação democrática, ética de sustentabilidade planetária) constituir-se em base duradoura de legitimidade supracultural para impor ordem no mundo?
· Será possível superar o risco maior do pluralismo sem convicção e do multiculturalismo sem integração?
· Como construir capital social em sociedades crescentemente atomizadas e fragmentárias?
· Será viável aspirar a uma cidade genuinamente intercultural alicerçada na confiança e na cooperação entre diferentes?
· Afigurar-se-á viáve repensar um novo contrato social de cidade que a refunde a partir de uma nova vizinhança local?
· Serão reabilitáveis as instâncias básicas – e tradicionais – de socialização primária: família, igrejas, escola?
· Haverá lugar a uma didáctica da interculturalidade capaz de viabilizar uma aldeia global onde a arte de viver juntos se cultiva em permanência?
· Fará sentido reinventar a aventura comunitária assente em novos pressupostos de inclusão e de pertença múltiplas?
· Será viável desacoplar cidadania e nacionalidade na busca de novos paradigmas de gestão inteligente dos fluxos migratórios?
· Poderá a humanidade reabilitar a cultura e o diálogo intercultural como chave de interpretação “espessa” da realidade?
· ...
O Centro de Estudos dos Povos e Culturas de Expressão Portuguesa ( CEPCEP) nasceu há 25 anos sob o signo do encontro de povos e de culturas. O seu ADN académico e a sua vocação intelectual vêm marcados pela efectivação desse mandato irrenunciável.
O CEPCEP e os seus responsáveis empenhar-se-ão, por todos os meios ao seu alcance, por fazer do ano que hoje se inicia um novo tempo no aprofundamento do diálogo sem fronteiras e na celebração do mistério conjugado da unidade e da diversidade da condição humana.
Oxalá este convite à partilha dialógica possa contagiar outros a fazerem desta oportunidade um espaço de densificação de ideias e um tempo de debate elevado.
Continuamos a acreditar que as boas ideias – e as boas pessoas – podem mudar o mundo para melhor.

Lisboa, 1 de Janeiro de 2008

Roberto Carneiro
Presidente da Direcção
CEPCEP
[1] Friedman, T.L. (2005). O Mundo é Plano – Uma História Breve do Século XXI. Lisboa: Actual Editora.
[2] Carneiro, R. (2007). Europa: O Desafio da Diversidade e do Acolhimento. Lisboa: Conselho Económico e Social (mimeo).
[3] Huntington, S.P. (2006). O Choque das Civilizações e a Mudança na Ordem Mundial. Lisboa: Gradiva.
[4] Carneiro, R. (2001). «Choque de Culturas ou Hibridação Cultural», in Fundamentos da Educação e da Aprendizagem. Vila Nova de Gaia: Fundação Manuel Leão.
[5] Touraine, A. (2005). Um Novo Paradigma –Para compreender o mundo de hoje. Lisboa: Piaget.

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